Os seres humanos carregam dentro de si algumas contradições inconscientes que parecem caminhar em paralelo com o desenvolvimento humano.  Uma das grandes contradições é a distância que criamos entre o nosso pensar e o nosso agir. Dizemos que a nossa alma é a parte essencial do nosso ser, no entanto gastamos o nosso tempo com experiências que nos distanciam dessa essência.  As organizações dizem que “as pessoas são seu maior ativo”, no entanto, conforme reconhece Peter Drucker (2006:148)[1]“poucas praticam o que pregam, tampouco acreditam nisso”. 

No primeiro Relatório de Desenvolvimento Humano, em 1990, a ONU enfatizava que “a verdadeira riqueza de uma nação são as pessoas” e que o “objetivo básico do desenvolvimento é criar um ambiente propício para que os seres humanos desfrutem de uma vida longa, saudável e criativa”. No entanto, em pleno século XXI, um dos maiores problemas do mundo são a fome e a miséria, e embora tenhamos políticas e mecanismos para reverter o quadro sombrio no mundo, como os 8 Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e seus desdobramentos nos países,   o quantitativo de pobres e miseráveis no mundo ainda é assustador. Considerando o desenvolvimento tecnológico que alcançamos, é inconcebível que um ser vivo seja condenado pelos seus semelhantes à humilhação de não ter o suficiente para suprir as suas necessidades básicas e as de sua família. O que justifica tamanha aberração, a não ser que padecemos todos de pobrezas coletivas? 

O senso comum entende como pobre aquela pessoa que não tem as suas necessidades básicas materiais atendidas. O Dicionário Aurélio (1986)  apresenta algumas definições para o termo pobreza: 1) Estado ou qualidade de pobre. 2)  Falta do necessário à vida;  penúria; escassez; 3) A classe dos pobres: “era um mãos-rotas para a pobreza”.  Se compreendemos que a pobreza é a falta do que é necessário à vida, então podemos nos perguntar:  o que é necessário para o viver bem? 

Na vida moderna, para viver bem, é necessário o atendimento das seguintes necessidades: saúde, ar puro, água limpa, alimento, vestuário, habitação, transporte, atividade física, educação, trabalho e boas relações consigo mesmo, com os outros e com o meio ambiente.  No entanto, mesmo que essas necessidades estejam atendidas, não há garantia de bem-estar, se outras necessidades tão importantes quanto essas também não tiverem sido atendidas. O que dizer da pessoa que não consegue ter sentimentos nobres e pensamentos positivos, e não consegue encontrar propósito e sentido para a sua vida? Essas pessoas também vivem em estado de pobreza. O atendimento às necessidades psíquicas e espirituais é tão necessário quanto o atendimento às necessidades físicas, mentais e sociais. Eu diria que uma pessoa que não tem uma boa saúde psíquica e espiritual dificilmente conseguirá ter uma boa saúde física e social. Especialistas já chegaram à conclusão de que a pobreza material é consequência de outros tipos de pobrezas, tantas quantas forem as necessidades humanas não atendidas. 

O sociólogo Pedro Demo (2003:43) salienta que a pobreza material e a pobreza política não são entidades separadas, mas faces da mesma moeda. Para esse autor, o reducionismo da pobreza à sua base material significa enorme pobreza política, pois a exclusão social mais drástica não é só a carência de bens materiais, mas não conseguir alçar-se à condição de sujeito capaz de comandar seu destino. (2003: pg 36).  Nas palavras do autor: 

A materialidade da pobreza não pode jamais ser relegada – carência de renda, emprego, moradia, remédios, comida -, mas menos ainda pode-se deixar de lado a manobra política implicada e que se constitui no cerne da fabricação da miséria. (...)   Mais que “não ter”, trata-se de “ser impedido de ser”. Pobreza política releva, ao lado da materialidade sempre implicada, a depredação qualitativa da sociedade, impedida de tornar-se sujeito consciente e organizado de destino. Pobreza mais dura, humilhante, é a do pobre que sequer sabe que é coibido de saber que é pobre, não atinando para  a injustiça de sua condição histórica. (Demo, 2003: pg 41). 

Demo alerta que a pobreza política não é uma característica das pessoas carentes de posses materiais. Há pessoas muito ricas que padecem de analfabetismo político, vivendo em condição de alienação, valorizando apenas o dinheiro na vida.Essas pessoas “constroem contra os pobres muros de afastamento como se nada tivessem a ver com isso, ou dedicam-se a assistencialismos compensatórios para aplacar a consciência ou desviar a atenção, ou escondem-se em “voluntariados”  dúbios que, ao final, privatizam o público”.  (DEMO,  2003:42) 

Em função da complexidade da temática, o economista chileno Manfred Max-Neef ensina que não devemos falar de pobreza, mas de pobrezas. A partir dessa concepção, o autor pontua alguns tipos de pobreza em função das necessidades que não estão sendo atendidas: 

La pobreza de subsistencia (debido a alimentación y abrigo insuficientes); de protección (debido a sistemas de salud ineficientes, a la violencia, la carrera armamentista, etc.); de afecto (debido al autoritarismo, la opresión, las relaciones de exploración con el medio  ambiente natural, etc.) de entendimiento (debido a la deficiente calidad de la educación); de participación (debido a la marginación y discriminación de mujeres, niños y minorías); de identidad (debido a la imposición de valores extraños a culturas locales y regionales, emigración forzada, exilio político, etc.) y así sucesivamente. (MAX-NEEF,  1993) 

Como podemos ver, embora o modelo de desenvolvimento vigente focalize apenas a pobreza material, existem outras pobrezas subjacentes que só podemos enxergar com a nossa consciência, visto que essas pobrezas estão num nível para além do materialismo. 

Sendo as pobrezas patologias sociais que têm raízes muito profundas em como nos relacionamos com a vida, com os indivíduos e com a coletividade, entendemos que a superação dessas patologias não depende apenas de mudanças nas políticas econômicas, mas de mudanças nos contextos políticos e sociais, que, por sua vez, depende dos valores éticos compartilhados na sociedade.  Enquanto não houver uma mudança de hierarquia - a Ética regulando a Política e a Política regulando a Economia - as pobrezas não desaparecerão do cenário mundial, posto que estão enraizadas nos modelos mentais dos indivíduos. 

Um modelo mental que legitima o enriquecimento ilícito, as falcatruas, o individualismo, a desonestidade, as leviandades, as intrigas e os abusos de poder, as violências, a usurpação dos direitos, a corrupção, os crimes ao patrimônio público e o sucesso em detrimento do fracasso de muitos é uma evidência de que a sociedade declinou de sua riqueza social e padece de uma grave pobreza ética, decorrente de sua pobreza espiritual. 

Segundo o Dicionário Aurélio, Ética é "o estudo dos juízos de apreciação que se referem à conduta humana susceptível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente à determinada sociedade, seja de modo absoluto”. Para o saudoso sociólogo brasileiro Betinho, Ética é um “conjunto de princípios e valores que guiam e orientam as relações humanas”. 

Quando falamos de pobreza ética, falamos da falta de princípios como norteadores do comportamento humano. Uma pessoa ética é uma pessoa que cuida da sua dimensão interna, que tem princípios e valores essenciais na formação do caráter e age em seu cotidiano de acordo com esses princípios e valores.  Como ficamos muito tempo centrados em necessidades superficiais, não desenvolvemos a ética da  compaixão, da justiça, do cuidado, da fraternidade, da solidariedade. E aí nos tornamos arrogantes e violentos. Somos violentos quando negamos a humanidade do outro e boicotamos a nossa competência amorosa que nutre a ética do cuidado. 

E, por fim, há a pobreza de sentido. Essa pobreza de sentido se manifesta quando a vida se torna vazia de objetivos elevados. Para que eu estou aqui? Que legado eu devo deixar? O que eu estou plantando, como o estou fazendo e como serei lembrado(a)? Esse tipo de pobreza está diretamente relacionado à falta de um propósito elevado que inspire a vida e seus relacionamentos. Pela falta de um propósito, as pessoas violam valores ético-espirituais fundamentais, e a vida vai ficando cada vez mais embotada, sem perspectivas e sem propósito. Esse é o terreno fértil para a depressão, para as dependências químicas e outras doenças psicossomáticas. 

Por isso nem toda pessoa que padece da pobreza material, padece da pobreza espiritual e vice-versa. Em minha trajetória, mantive contato com pobres materialmente que demonstravam uma abundância de princípios ético-espirituais, e encontravam conforto e sentido nas suas carências, e se nutriam desse significado e de uma perspectiva de vida para além da nossa compreensão materialista. Eles sabem que tudo é transitório, por isso focam a sua vida no ser, uns para esquecer a escassez e a penúria material; outros porque a pobreza lhes permite exercitar o desapego, às vezes negando e passando por cima da própria dor. 

Também já encontrei pessoas ricas que, por sua vez, viviam numa vida de intensa pobreza ética e espiritual; estavam prisioneiras do fazer e do ter. Como o sentido da existência dessas pessoas está vinculado à riqueza material, à segurança e ao prazer que a riqueza material proporciona, empregam a sua vida na geração e ampliação da riqueza, ou na busca da satisfação por meio dos prazeres fugazes. Viciaram-se no prazer do corpo emocional/sensorial para saciar a fome do espírito. 

Existem pessoas que tanto são pobres materialmente, quanto são pobres de princípios e valores, e a vida para essas pessoas nada mais é do que uma busca incessante para saciar as suas necessidades físicas e emocionais. Suas feridas internas são tão profundas que, espiritualmente, se arrastam e deixam sua consciência sob o domínio dos instintos primários, razão pela qual se bestializam e cometem atos de violência contra si mesmos e contra a sociedade. 

Por outro lado, existem pessoas que são ricas espiritualmente e materialmente têm o suficiente para viver bem. Estas são verdadeiros diamantes lapidados que despertaram a sua consciência. O sentido de riqueza para essas pessoas transcende o plano da matéria. Como suas vidas são movidas por um propósito, essas pessoas são plenas de força interior, de amor, cuidado, ética e senso de justiça. Mas esse estado do ser não as deixam apáticas, como alguns podem pensar. Essas pessoas são capazes de se indignarem diante das injustiças e de promoverem intensas transformações sociais. Foi  o caso do Mahatma Gandhi, Marthin Luther King, Nelson Mandela, Madre Tereza de Calcutá e outros que, anonimamente, realizam a sua missão e enriquecem a vida com suas presenças e suas ações. 

A propósito, Madre Tereza de Calcutá ensinava que a maior de todas as pobrezas é a falta de amor. Esse estágio de pobreza é como se a gente padecesse de sede num deserto, enquanto há um oásis intacto, e ainda inexplorado, dentro de nós. Passamos por várias reencarnações em busca desse oásis no mundo exterior, e por isso matamos – que grande contradição – e morremos, sem saber que esse espaço sagrado está guardado dentro de nós, esperando o momento em que a nossa consciência desperte e possa, enfim, encontrá-lo. Enquanto não despertarmos, permaneceremos pobres, presos à nossa ignorância. 

Conhecemos as pessoas ricas pelo brilho no olhar. Elas trazem consigo algo de genuíno, uma energia vibrante que se irradia dos seus seres e aconchegam os que estão por perto. A riqueza dessas pessoas é a energia amorosa que irradia de si, e semeiam alegria e paz. Não é à toa que o grande sábio e rei Salomão pediu ao Grande Ser que lhes desse um coração amoroso. O coração amoroso é maior riqueza de um ser humano. Encontrar essa riqueza é a nossa vocação, é o nosso propósito divino. Todo o nosso caminhar neste planeta se constitui da tarefa de encontrar essa Presença Amorosa, que se aninha no templo sagrado do nosso coração. 

Alguns podem até duvidar que essa força esteja dentro de nós, e se perguntarem: então porque não a achamos? Simplesmente porque não fomos educados para olhar para dentro de nós mesmos, só para fora. Por isso, os mais antigos nos ensinavam que mesmo que não tenhamos consciência, estamos sempre buscando Deus: “Quem não chega a Deus pelo amor, chega pela Dor”. 

Só o amor nos conduz ao reino da Bem-Aventurança, mas é a Dor que nos desperta para o local onde estamos, onde estagnamos e o que precisamos mudar para prosseguir a caminhada. É nessas ocasiões que paramos para olhar para as nossas perdas, para nós mesmos e para as nossas pobrezas. A Dor e sua parceira, a Morte, são duas Mestras cuja função é facilitar o nosso despertar.  Diante da DOR e da MORTE, as ilusões se dissolvem e as máscaras são arrancadas violentamente de nós.  Com a queda das máscaras, nossas estratégias de sustentação do ego se mostram ineficientes. Ficamos expostos e vulneráveis, pois as nossas sombras e os nossos medos, que foram aprisionados nos porões do inconsciente são liberados. 

Diante dessa realidade sombria, começamos a perceber que não somos nada daquilo que pensamos ser, o que, se por um lado, nos causa desconforto e pesar, por outro nos liberta das prisões interiores que nós mesmos criamos para sustentar as ilusões. Livres das prisões ilusórias, novas possibilidades criativas são engendradas para que a nossa verdadeira essência possa ser revelada.  E a nossa verdadeira essência é amor, a energia que une todos os seres e que sustenta a vida, fonte de toda riqueza e bem-aventurança.  Entendo que essa seja a única energia capaz de alimentar todos os seres e de saciar todas as nossas necessidades, pois parte do princípio de que não podemos ser felizes sozinhos.  

Quando aprendermos a explorar a Energia da Fonte, acabar-se-á a escassez do mundo, e então não haverá mais pobreza de nenhuma natureza. Teremos, então, entendido a verdadeira razão para estarmos no planeta Terra, empreendendo essa longa jornada como seres humanos em busca do Reino do Amor, fonte da Abundância e da Bem-Aventurança, a “Terra Prometida” dos nossos ancestrais.

Autora: Maria de Fátima Pinheiro de Mendonça (SE)    



[1] DRUCKER, Peter. O Homem que Inventou a Administração. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006

 

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