"O rostinho curioso e amedrontado fitava-me em expectativa. B. era um dos 15 internos do abrigo, que funcionava como casa de passagem, enquanto o poder familiar era suspenso pelo Juizado da Criança e do Adolescente, pelo Conselho Tutelar ou pelo Ministério Público. B., com apenas 5 anos, era vítima de abuso sexual cometido por seu padrasto. Naquele lar temporário, ele teria proteção, escola, acompanhamento psicológico, assistência médica, atividades complementares e acima de tudo, amor... A sessão de cinema começou! B. e seus coleguinhas, como tantas outras crianças de sua idade, vibravam de felicidade". 

Recentemente, discuti com um colega sobre a importância do Estado Brasileiro em assegurar uma rede de proteção social aos cidadãos vulneráveis. Ele, muito estudioso, amigo de adolescência, iniciou-me na leitura dos clássicos socialistas. Aos 14 anos, discutíamos o "Manifesto" de Marx e Engels, "As Veias" de Galeano e aguardávamos ansiosos pela última edição da "Voz Operária" ou do "Pasquim". Eram os últimos anos da ditadura militar no Brasil e sonhávamos com um mundo mais justo. Pois bem, decorridas quase quatro décadas, esse amigo, hoje tem mais de 1200 livros sobre economia, é um liberal convicto, admirador da escola capitalista austríaca, e é avesso a qualquer tipo de proteção social! Tornou-se convencido pelo ateísmo e, independentemente de suas crenças, é uma das pessoas a quem mais continuo a respeitar. 

Eu, por minha vez, percorri outros caminhos: espírita desde criança, encontrei na social democracia europeia, o modelo mais adequado de justiça social ao qual podemos aspirar neste mundo de expiação e provas, momentaneamente. Tive oportunidade de trabalhar por quatro anos na área social do governo, conduzindo as políticas de Assistência Social de Pernambuco e aprendi que a Constituição de 1988 legou-nos uma das legislações mais avançadas do mundo em direitos sociais. O Brasil tem um sistema único de Assistência Social - SUAS, semelhante ao sistema único de Saúde - SUS, que garante o artigo XXV da Declaração Universal de Direitos Humanos:

I.        Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.

II.    A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma proteção social.   

As leis infraconstitucionais brasileiras reforçam esse direito, com benefícios para idosos e pessoas com deficiência em estado de pobreza, além de políticas avançadas de transferência de renda. Foram anos de avanços e conquistas de inúmeros militantes sociais, acadêmicos, gestores e políticos brasileiros, que estão sob ameaça recente, por uma conjuntura financeira desfavorável. 

Voltando a B., a decadência de nosso sistema político, carcomido pela corrupção, junto com a sanha liberal por reformas que tiram direitos dos mais vulneráveis, conduzidas por pessoas que são, no mínimo, suspeitas para levarem adiante suas propostas, aprofunda o fosso que nos separa de um Estado de Bem-Estar Social. Se não houver um pacto na sociedade brasileira, costurado por atores políticos e sociais confiáveis, crianças como B. continuarão a ser exploradas, ameaçadas e assediadas. 

Desde que a crise começou, há 3 ou 4 anos, os recursos escassearam. É árduo imaginar alguém mais vulnerável que uma criança de 5 anos que foi violada em sua intimidade, no seio de seu lar! Como são vozes silenciosas, é fácil aos governantes de plantão cortarem verbas e fazerem vista grossa aos clamores das "pedras, pois pedras não cantam". Essa foi a postura do Governo do Estado de Pernambuco, infelizmente. A redução no orçamento da Assistência Social nos últimos anos foi gritante! E o corte de verbas, executado justamente naqueles que mais necessitam. 

Está claro que a proteção social representa um avanço civilizatório. Pela primeira vez na história da Humanidade, garantias sociais são tratadas como direitos, universais, estendidos a todos os habitantes do planeta. Seja qual for o modelo econômico adotado, não podemos abrir mão dessas conquistas. A fraternidade e a solidariedade devem ser valores supervenientes e, só assim, o egoísmo e a ganância humanos começarão a ser vencidos, pouco a pouco. Que nível de bem-estar oferecer e como financiá-lo, é questão que depende do avanço da sociedade e dos recursos disponíveis, claro. Minha convicção é que, quanto mais evoluída for uma sociedade, mais ela protegerá os vulneráveis. 

Um exemplo objetivo é a linha de pobreza extrema, outrora chamada pejorativamente de miséria. Não obstante estudos científicos mostrarem que temos condições plenas de superar TODA a miséria humana em menos de uma década, ainda persistem quase um bilhão de pessoas na Terra que não têm sequer as condições nutricionais mínimas diárias para subsistir!! Bastaria deslocar um quarto (sim, só 25%) dos recursos gastos anualmente em armamentos, que os bolsões de pobreza extrema seriam eliminados da humanidade. Estamos diante de um dilema financeiro ou ético? 

Não tenho dúvidas de que estamos no limiar de profundas transformações sociais. Os sinais são claros: a decadência do sistema democrático representativo, as condições inabitáveis de nossas metrópoles, o avanço da internet e das redes sociais, o desemprego estrutural, os fenômenos migratórios de massas, o avanço científico e tecnológico, as conquistas na área médica, a diminuição dos conflitos bélicos, a consciência da necessidade de proteção do meio ambiente, dentre outros, são desafios de nosso tempo. 

A nossa Constituição define que é papel do Estado, com o apoio da Sociedade, promover a rede de proteção social. B. estava em uma ONG, mantida com recursos privados, oriundos de sócios de boa vontade, que promove convênios com órgãos públicos. Você, amigo leitor, já contribui regularmente com alguma iniciativa social? Se não, não perca tempo: procure uma instituição de sua preferência e confiança e doe o que puder – seu tempo, seu talento, sua dedicação ou algum recurso financeiro que lhe sobra – você vai ver como a sua vida vai mudar, praticando o altruísmo! 

"B. ficou na instituição por 8 meses. Reaprendeu a confiar nas pessoas, teve o apoio e a atenção possíveis de trabalhadores dedicados e após várias reuniões desses profissionais com as autoridades, voltou ao convívio familiar ampliado, agora sob tutela dos avós, com a esperança de um futuro melhor". 

Autor: Acácio de Carvalho (PE) - Junho de 2017

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